(Somente) À Noite
segunda-feira, 31 de dezembro de 2012 | Opine aqui

(APARENTE HISTÓRIA DE DESVÃOS NA GRANDE CIDADE GRANDE)


"A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
[...]
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosse mil
disseminada pela cidade."
Ferreira Gullar

Uma rua deserta
um homem que corre
noite
(minha mão em teu seio)
uma luz de alguma porta
de alguma casa de família
lhe ilumina a face
tão triste, tão só
(meu lábio em teu lábio)
corre o rapaz mais triste do mundo
sabendo de um destino
que já não o aguarda
(nossas mãos unidas sobre a cama)
na direção do fundo
de uma cidade morta
disparada como um cavaleiro a galope
dispara como se com o braço
pudesse alcançar a esperança
(teu suor, nosso cansaço compartilhado)
e chega, talvez ao fundo da cidade
talvez ao fundo de si
lá onde a amante se esconde
no mais escuro do moço que corre
no mais distante de tudo que já havia conhecido
(a luz, a luz de nossos cigarros acessos)
e na dor da alegria
que sente tão fundo
permite-se amar
descobre-se uma mentira
em tudo que já foi
tudo que ainda será
e se esconde nas garras
de uma amante invisível
(ah! quisera eu a eternidade para perder-me em teus desvãos).



A morte te reduz a ela mesma.
segunda-feira, 10 de dezembro de 2012 | Opine aqui

"Não se pode  ser infeliz, não se pode morrer em vida, não se pode desistir de amar, de criar. Não se pode: é pecado, é proibido [...] Não é possível adiar a vida."
Caio Fernando Abreu 

A vida arde no mais fundo da terra, no mais dentro de nós. Grita débil por uma mudança, um passo à frente, uma libertação mais ampla de toda esta coisa que pensam os outros, que insistimos em ouvir. A morte, em contra-partida, freme e pulsa ao nosso lado, como um medo constante. Os homens morrem e fica somente a lembrança deles, a lembrança inócua, desmanchada pela distância e por nossas crenças mesquinhas. Fica a lembrança mentirosa de cada homem que se vai, de cada ciclo que morre, de ondas, de coisas efêmera e sucessíveis. A verdade não se encontra na boca de ninguém. Não existe. A verdade deixou de existir com a pré-história. Aqui é "cada um se vira como pode", com suas histórias, com suas mentiras, com suas tantas fatalidades que são suas e de mais ninguém. A vida segue e freme e pulsa por coragem, pede sedenta por liberdade. Não quer rendas imaculadas estendidas sobre um leito de casal. Quer sangue e merda e lodo, pulsa por ter de volta a verdade há tanto perdida, pulsa e freme e bate e sua, sem pudor, por uma noite a mais de perdição, um amor falso. Pede por tudo aquilo que o medo nos inibe: tudo aquilo que todo mundo pensa, que todo mundo é. A vida exige. E exige que hoje mesmo se saia de casa pelas ruas a gritar, se tire a roupa no meio da praça, se ame sem culpa. A vida exige o que a gente quer no mais fundo da gente. E por tudo isso a gente sofre. No teu quarto de noite  tu choras, com medo, não mais dos fantasmas embaixo da cama, mas por causa do fantasmas que deixaram em ti. Dos pensamentes que te impedem de um movimento brusco, de um beijo inesperado, de um olhar. Sofres pelas tuas limitações, sangras por elas. E a vida uiva pela tua loucura, a vida uiva para além do teu choro, para além das quatro paredes onde talvez libertes tudo aquilo que queria em ti e para ti por tanto tempo, onde talvez vivas. A vida uiva pela rua como um cão sem dono. E e nesse uivar se opõe a morte, a morte de ti em ti mesmo. A morte companheira que nasceu contigo e vai te reduzindo. Te mantendo com os pés no chão, te lembrando de não fazer isto ou aquilo. Te lembrando de não viver. A morte te reduz ao nada. E te deixa um gosto amargo na língua. A morte te prende. Morres em ti mesmo todos os dias quando evitas qualquer coisa, quando não amas integralmente, quando descansas tua face cansada na janela do ônibus indo para o trabalho. Morres em ti mesmo quando preferes as rendas brancas imaculadas ao lodo, ao caos, à merda. A morte te reduz a ela mesma. E te cala. Calado, mudo, submisso, paras de morrer em vida, e morre. Morre embebido na morte que tu mesmo construíste. E nessa tua morte total, quando ainda se fechar o caixão sobre teu cadáver, que um dia há de virar carcaça, ainda se poderá ouvir um último suspiro de vida guardada em ti, vida que tanto tempo esperou pela liberdade a ser cometida. Queira Deus, que quando enterrem esta coisa que foi tu e que talvez já nem coisa seja, venham aqueles, aqueles que já virão depois de ti e que não têm medo de nada, aqueles que vivem, que venham eles e brinquem com tua carcaça.


Seja o que for

"Onde queres o ato, eu sou o espírito e onde queres ternura, eu sou tesão. Onde queres o livre, decassílabo e onde buscas o anjo, sou mulher. Onde queres prazer, sou o que dói e onde queres tortura, mansidão. Onde queres um lar, revolução e onde queres bandido, sou herói" Caetano

O blog

Para Jéssica,
porque "o que obviamente não presta
sempre me interessou".

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Soneto de Fidelidade

"De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure."