"Os ventos do norte
Não movem moinhos
E o que me resta
Não lembro hoje se foi Maria ou Cecília que eu comecei a esquecer primeiro. Sei que hoje, na minha memória eu não tenho mais que algumas lembranças esparsas das duas mulheres que mais marcaram a minha vida. Algo como um perfume numa noite de verão, que eu nem lembro se pertencia à uma das garotas ou às flores que ali assistiam nossas cenas ou uma cama com lençóis amassados e nós dois fumando cigarros importados da Finlândia, Tailândia e sei lá de onde.
Lembro agora, acho que foi com Cecília, que eu abri os livros da estante e li cada frase que eu tinha destacado com minha caneta marca-texto verde, enquanto ela ria, nua, deitada no tapete da sala. E com Maria lembro de ter, do nada, ficado louco, pegá-la e levá-la pro meio daquele mato e trepar com ela lá mesmo, sem medo de ser visto.
A minha paixão por essas duas mulheres era a mais tórrida que se pode ter, contando os casos de Romeu & Julieta, Hamlet & Ofélia e até mesmo Marlon Brando & Maria Schneider em O Último Tango em Paris. Meu amor por elas era bem mais que tudo isso: era, simplesmente, inexplicável, sem motivo, sem circunstância, só era. Como num conto de Clarice Lispector.
E enquanto eu mascava chicletes no parque, Maria, a mais meiga, corria ao meu encontro e me abraçava e me beijava e naquele exato momento eu era dela. E a levava ao meu apartamento e lá nos amávamos. Posso dizer que eu e ela já transamos em cada sala desta casa, posso sentir seu cheiro em cada almofada puída, cada parte do sofá gasto.
E Cecília, a mais puta – para usar o adjetivo certo, ao compará-la com Maria -, me esperava na frente dos bares e quando me via com a garrafa de cerveja na mão corria ao meu encontro e me abraçava e me beijava, e naquele instante eu era dela. As noites eram dela. E posso contar nos dedos os lugares onde o meu corpo não esteve contra o corpo dela, ambos nus, o sexo em brasa, como fazem os amantes na alta madrugada, posso contar as vezes em que eu pensei que não eram minha, nenhuma delas. Mas acontece que eram, em seu jeito único de ser ela eram minhas, cada uma à sua maneira.
Maria era minha toda vez que me deixava vê-la por inteiro debaixo do vestido florido bordado à mão e Cecília, Cecília já nem se importava com o ato de entregar-se ou não, ela era minha todas as vezes que vinha me ver no bar, cada vez saindo de uma canto diferente, que nem um gato sem lar. Eu era o lar de Cecília, não os tantos outro com que ela andava por aí, que eu sabia que ela não era só minha, mas eu era seu lar e ser o único que podia lhe passar a mão nos cabelos antes que ela dormisse não tinha preço. Era algo sem igual ter Cecília e Maria, as duas me manado do seu jeito, noite e dia.
Mas do jeito que eu as amava era impossível que elas ficassem comigo: Maria, pois precisava ser a única, e quando descobriu Cecília teve um acesso de fúria, tanto que parte de meus cristais até hoje conservo quebrados. E Cecília, Cecília me deixou por ser do feitio dela, por ser da carne dela ir deixando devagarinho, devagarinho, até que quando a gente se dá conta já se foi embora, sem nem dizer adeus.
Mas mesmo depois que as duas foram embora eu voltava todos os dias àquele parque e àquele bar, dia e noite esperando Maria e Cecília que não voltariam nunca, eu sei, mas que para sempre seriam minhas, pelo menos enquanto eu não definhasse e começasse a esquecer os momentos que passamos juntos, como está acontecendo agora.
E qualquer dia me esquecerei Maria, e qualquer dia esquecerei Cecília, e qualquer dia me esquecerei de mim mesmo. Sei que de Maria vai ser de súbito, como que leva uma bofetada, um dia vou acordar e ela não vai mais estar lá, me acompanhando onde quer que eu vá. E com Cecília será o oposto, eu vou esquecer ela devagarinho, devagarinho, até que como um gato a memória dela se esvaia e suma entre os muros, sem nem dizer tchau.
E de mim, bem, de mim, já venho esquecido faz tempo, desde quando comecei a me lembrar de Maria e Cecília que me esqueço todos os dias de mim mesmo. Só que de vez em quando esqueço de recordar que já me esqueci, ou melhor, de que ainda estou aqui (me esquecendo de mim).
E vivo.