Trigal
quinta-feira, 20 de maio de 2010 | Opine aqui

"Levai-me por onde quiserdes
aprendi com as primaveras a deixar-me cortar
e a voltar sempre inteiro"

Olhei ao meu redor, tudo parecia com anos atrás, da primeira vez que tinha estado ali. Casa de tijolos à vista, risos ao longe, janela que dava para o trigal. Tudo tão igual que cheguei a pensar que de alguma forma tinha voltado para aquela momento em que estive ali pela primeira vez.
Mas esse momento de sonho se desfez quando vi a rachadura no canto da parede esquerda, os riscos feitos à caneta - inapagável - que as crianças tinham deixado ali, as cortinas sujas. Ali acabou mau momento de sonho, nesse pequeno instantes, nada mais que trinta segundos. Vi que o sonho acabou.
Tudo acabado, tudo. Pela segunda vez na vida estava realmente só naquela casa, sabendo que ninguém voltaria, que ninguém tinha saído para ir ao mercado. Agora eu estava realmente só ali, naquele arquipélago de pequenas ilhas, cômodos.
Sentei na cadeira de balanço que ela usava para embalar os nosso filhos quando bebês e fiquei a olhar o trigal no fim de tarde. Lindo, lindo. Dourado, o fim daquele sonho era dourado, como os trigos no campo.
Depois do fim do sonho eu sabia que o tempo se tornaria longo, haveria momentos em que pareceria não passar, em que o vento pareceria mais importante, mas fingi não me importar e continuei a contemplar o trigal na janela dos fundos. Sem nada para fazer, nem amigos para convidar, nem filhos pra cuidar, nem ela.
Esse foi um dos momentos em que o tempo demorou passar e o vendo se tornou importante, podia jurar que no fundo ouvi algo como Chopin, aquela música que sempre me deixava com um sorriso bobo e sem motivo no rosto, agora me deixava ainda mais atônito pelos acontecimentos recentes.
Voltei à me concentrar no trigo da janela dos fundos e vi que nada, nada além do vento, o alterava. Então desejei ser como esse trigo nos fundos da minha casa, sentir-se inalterado pela sorte dos acontecimentos recentes, sentir-se só e livre e não mais preso à ela como antes. Desejei ser como o trigo, que murcha no inverno e aparece como no verão.
Continuei sentado na cadeira de balanço olhando o trigal que florecia nesta tarde de primavera;
Continuei sentado na cadeira de balanço esperando o meu verão chegar.


Vazio
sexta-feira, 7 de maio de 2010 | Opine aqui

"Cria a dor
Cria e atura"

MOMENTO 1

Ela, eu, panorama, vida. Olhos arregalados, bocas vermelhas, gritos, gemidos, sexo. Cheiro de suor misturado ao cheiro de banho. Sabonete, shampoo, creme de barbear, lâmina. Café, jornal, roupa de trabalho, despedida, vazio, vazio.

MOMENTO 2

Almoço: panquecas, arroz, salada, mesa, frente à frente os dois. Olhos nos olhos. Vazio. Conversas, como foi seu dia?, bom e o seu?. Descanso, televisão, olhos nos olhos, quarto cama, bocas vermelhas, gritos, gemidos, sexo. Suor misturado à lavanda. Banho. Vazio. Despedida, vazio, trabalho, vazio, vazio.

MOMENTO 3

Casa, janta, mesa, comida, vazio. Olhos nos olhos, vazio, conversas vazio, algo mudou, não sei, você sabe. Vazio.
Sala, poltrona, eu, sofá, ela, silêncio. Vazio. Nada a dizer, a dor parece uma antiga companheira que bate à porta, o sonho acabou e não há nada que possamos fazer sobre isso. Só essa certeza da saudade. Vazio. As memórias: bocas vermelhas, gritos, gemidos, sexo. Vazio. Suor e lavanda. vazio. Banho. Vazio vazio vazio.
Nada nos olhos verdes, nada nas mãos, nada na mesa. VAZIO.
Despedida, vazio.

MOMENTO 4

Volta do trabalho, vazio, casa vazia, a rmário vazio, bilhete: Nada nunca foi tão grande e tão pequeno. VAZIO. Dor.
Separação, dor vazio, sem ela, nem ninguém. vazio
Dor dor dor.
Vazio.

MOMENTO 5

Vazio, vazio, vazio, vazio, vazio, vazio...


Cigarro café whisky
terça-feira, 4 de maio de 2010 | Opine aqui

"Se lembrar não é celebrar;
Dura é a dor quando aflora.
Esquecer não é perdoar;
Se consagrou, sangra agora."

Cheguei ao ponto de pensar em jogar tudo pro alto, esquecer. Como seria bom esquecer esse tudo que passou por nós, esse todo cheio de sentimentos não reservados, de coisas ditas sem pudor. Coisas que amam e coisas que ferem, que deram um fim à nós dois.
Fecho os olhos: escuro por um tempo, depois vejo duas bolas azuis com pequenos pontos pretos no centro imersas em um mar branco cheio de veias vermelhas, essas veias que deixam transparecer o que tem por dentro e que me dão espasmos de medo. Por isso olho o resto de ti, "bela bela mais que bela", mais que linda, mais que minha, sozinha. Rainha de si mesma, sem ninguém, até onde eu sei, até agora.
Desde nossa separação sei que eu sozinho não sei viver direito, não mais, depois daquele tudo, daquele todo. Desde aquele primeiro dia que percebi que não saberia mais viver só. Não precisa realmente ser contigo, precisa ser com alguém.
É que eu sinto falta, e confesso, das tardes, das noites, dos risos, dos LPs na vitrola antiga e cigarros, cigarros e cafés, whisky vodka vinho. Da tua e da minha, baby, isso faz falta. Faz falta amar você, de verdade, como eu amava, amar alguém, tudo isso faz falta, realmente.
Cigarro café whisky. Falta falta falta. Sinto falta.
Eu preciso aprender a ser só desde que você partiu e não consigo, baby, simplismente eu não consigo.


Seja o que for

"Onde queres o ato, eu sou o espírito e onde queres ternura, eu sou tesão. Onde queres o livre, decassílabo e onde buscas o anjo, sou mulher. Onde queres prazer, sou o que dói e onde queres tortura, mansidão. Onde queres um lar, revolução e onde queres bandido, sou herói" Caetano

O blog

Para Jéssica,
porque "o que obviamente não presta
sempre me interessou".

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Soneto de Fidelidade

"De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure."