Cigarro
quarta-feira, 6 de abril de 2011 | Opine aqui

"Reparei apenas numa mancha de batom.
'Apenas' porque não tenho fé.
Ele fumava as mulheres."
Fabrício Carpinejar

O cigarro demora a acender dessa vez. Estou chorando a perda do que ainda não partiu. Estou fumando a tua perda. Fumando lentamente, olhando os carros passarem apressados na rua abaixo, as pessoas indo a lugar nenhum, ouvindo música triste baixinho, bebendo whisky doze anos.
Você ainda não foi embora, mas não está mais comigo, não te sinto mais aqui. Cada vez que olho em teus olhos, não há nada, teus olhos estão vazios, teus beijos estão vazios, tanto que de vez em quando me faz pensar que está tudo perdido, como agora. Está tudo perdido, tudo perdido. Sabe que eu tento dizer a mim mesmo que não tenho com o que me preocupar, que isso é "pedra rolante", não cria limo. Mas todas as vezes sou vencido pelos pensamentos de que tudo se perdeu.
E enfim chego à mim parado na sacada do prédio velho, fumando, tentando fazer aqueles anéis de fumaça que nunca consegui, chorando um pouco, mas baixinho, os vizinhos não podem ouvir. A rua movimentadíssima abaixo não parece mais movimentada que meu coração. Bombeando sangue sangue sangue. Arterial e venoso. Disparado. Sempre que eu penso em coisas ruins ele fica assim, disparado, alarmado, desde criança. Deve ser primitivismo desse meu espírito xucro.
Fumo mais rápido agora, choro mais alto, já sem medo de ser ouvido por vizinho algum. O cigarro está chegando ao fim e logo será possível sentir o gosto da nicotina, o gosto horrível da nicotina. Só agora percebi que peguei teu maço de cigarros, pois quando abro para pegar outro cigarro percebo uma marca de batom em um cigarro que foi parar nos teus lábios, mas que acabou não sendo fumado. Aguarda pacientemente, sujo de batom. Ao olhar aquele cigarro sujo, um leve riso passa por meu rosto, lembro do batom vermelho-maçã que você usa, tão linda. Mesmo com a tentativa de riso e de lembrança, continuo chorando.
Trêmulas minhas mãos roubam mais um cigarro da tua carteira quase cheia, acendo. Este acende rápido. Inspiro profundo.
Choro quase gritando agora, relembro quase gritando agora. E finalmente expurgo a fumaça do teu cigarro de dentro de mim.
Você não está mais em meus pulmões.
E nem em meu coração.


Seja o que for

"Onde queres o ato, eu sou o espírito e onde queres ternura, eu sou tesão. Onde queres o livre, decassílabo e onde buscas o anjo, sou mulher. Onde queres prazer, sou o que dói e onde queres tortura, mansidão. Onde queres um lar, revolução e onde queres bandido, sou herói" Caetano

O blog

Para Jéssica,
porque "o que obviamente não presta
sempre me interessou".

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Soneto de Fidelidade

"De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure."